Descendo a ladeira com vontade de viver
…………………………………………………………….Pedro Brasil Jr.
Quem já ultrapassou a barreira dos cinquenta anos, com certeza que, em algum momento, teve a oportunidade de observar algumas ilustrações que ocupavam as antigas “folhinhas”, mais precisamente, os calendários de parede, que, outrora, todo o comércio oferecia aos clientes ao final de cada ano.
As figuras retratavam cenas do cotidiano captadas pelo olhar atento do artista John Henry Hintermeister, que passava para o papel visando atender empresas do ramo publicitário, como American Art Works e Brown & Bugelow entre outras.
Decerto que eram cenas da história americana, mas que muito bem se adaptavam a vários lugares do mundo, inclusive essas terras brasileiras.
Eu acredito que até a metade dos anos setenta, ainda se podia ver alguma ilustração do Henry em folhinhas, depois as ilustrações típicas dos calendários deram lugar para fotografias de paisagens e de mulheres seminuas que ficavam nas paredes das oficinas.
Pois bem! Justo hoje, quando eu divagava, uma vez mais, sobre a simplicidade da vida, surge à minha frente uma postagem onde deparei com a cena do vovô, o neto e o cachorrinho descendo uma ladeira sobre um carrinho de madeira. Coisa tão típica de uma época em que meninos, meninas e adultos detinham tempo para peripécias dessa natureza, entre outras.
Talvez seja possível, até, a gente dar uma paradinha, aqui e agora, olhar pela janela, observar o céu e as nuvens passeando e assim, regressar no tempo e no espaço para uma singela avaliação do que foi o ontem e de como nos deixamos escravizar pela balbúrdia dos dias, pela dependência dos celulares, dos cartões, das comidas rápidas e dos estômagos e intestinos que gritam porque a máquina não está seguindo o destino conforme a caixa de troca. Da mesma maneira, nossa falta de tempo para criar uma brincadeira com os filhos, com os netos, com a gente mesmo. Tudo está na internet, no YouTube, nas redes sociais, todas onde, atualmente, temos especialistas para tudo, com suas receitas mirabolantes, sempre visando te vender algo que nunca vai proporcionar o resultado prometido. Na verdade, você não é mais uma pessoa; você é um número que pode integrar uma conta e, do seu dinheiro, contribuir para que outros aumentem o seu capital, como se isso fosse uma brincadeira. Em suma; eles te exploram, te enganam, mentem e colocam você na roda cutia, puxam a fieira e você fica, pela vida, girando como pião, até perder as força e deitar.
Faz pouco, terminei de ler o livro “Agir e Pensar como o Pequeno Príncipe”, do escritor francês Stéphane Garnier, onde ele, após esmiuçar a obra de Antoine de Saint-Exupéry, nos ensina a entender, de fato e de direito, tudo o que Exupéry expôs ao mundo em sua maravilhosa obra. Assim, a gente passa a ter um olhar mais objetivo a respeito da vida, em qualquer tempo e em qualquer lugar. Não importa nossa idade, nossa rua, nossa cidade, nosso país. Somos todos integrantes do mesmo planeta, que gira em torno do sol e que dele depende para todas as vidas aqui presentes. No miúdo planeta do Pequeno Príncipe ele vê o pôr do sol várias vezes em um só dia e nós, por aqui, raramente nos permitimos admirar esta maravilha. Somos ínfimos em meio à grandiosidade do universo e, apesar até de grande parte saber a verdade sobre si, insistimos em viver num mundo que não é o nosso, fugindo, assim, da verdadeira linha de tempo para a qual fomos direcionados. Permitimos, pelo menos a maioria de nós, que nossa criança interior permaneça no calabouço daquele castelo que um dia construímos no ar. Temos pressa e voracidade em ganhar dinheiro, em possuir cada vez mais bens, mais status para, passados os anos, olharmos no espelho e descobrirmos que não somos mais aquela criança que brincou e jogou fora os folguedos. Envelhecemos e passamos a viver de lembranças, enclausurados numa sala, sentados num sofá, diante a um aparelho de televisão que também não nos leva a lugar algum.
Melhor seria descer a ladeira, com os filhos ou netos e sentir, ainda que com idade avançada, o frêmito do viver, o poder da existência em um mundo moldado para nos receber de braços abertos e nos oferecer todos os recursos para uma vida calma e tranquila.
É uma pena já não termos na parede da cozinha aquele calendário com cenas tão simples, que, outrora, nos lembrava a respeito da preciosidade do tempo e da importância de praticar o viver lá fora, na rua, no campinho, na chuva, na fazenda ou caminhando descalço nas areias de uma praia.
Está cada vez mais comum a gente ouvir das pessoas “que os dias estão mais curtos, que os anos estão passando depressa, que a vida está escoando, as dívidas aumentando e que já não se tem tempo para mais nada”. Na verdade, seguimos no mesmo sincronismo, porque a Terra, os outros planetas, a nossa lua, o nosso sol, seguem em suas trajetórias pelo universo como sempre o foi, há milhões de anos. Nós, verdadeiras partículas de pó, dotadas de vida, é que não estamos mais vivendo adequadamente, porque em dado instante, num passado recente, sem perceber, passamos a abraçar outras causas, a interagir com interesses espúrios e, dessa forma, nos deixamos acorrentar pelo sofrimento, pela dor, pelas dificuldades que nós mesmos criamos a fim de mostrar aos outros quem nós NÃO somos e, a nós mesmos, a capacidade de esquecer que a vida é para viver com simplicidade.
Quando abrimos a janela que fica no interior da nossa sala, eis que surgem as cenas da tragédia humana. As guerras, a fome, a sede, a poluição, os desmatamentos, a violência urbana, os apelos para você comprar o que não precisa e as atrações que ali te prendem para te colocar em meio aos dramas, armações, trapaças e lições para uma vida envolta num verdadeiro inferno. E você fica ali, entrando pela madrugada, dormindo pouco, exasperando todo o teu sistema neurológico para, na manhã seguinte, sair para os compromissos sonolento, cansado, irritado e transformando a tua vida naquele inferno que a medíocre “sala de aula” insiste em te aplicar como lições da vida moderna.
Eu ainda fico com a inocência e pureza das crianças e, se me permitem, vou descer uma ladeira, ralar o joelho, passar mertiolate, brincar com os cachorros e, no surgir da primeira estrela, dizer com convicção que “vivi um dia pleno” e que amanhã, a vida palpitará uma vez mais e logo cedo, minha criança interior vai saltar da cama para uma magnífica empreitada de saborear a vida com toda a intensidade que ela merece.
Pedro Brasil Júnior, Curitiba, 24.11.2023.
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Nota: John Henry Hintermeister – 10.10.1869 (Winterthur, Suíça) –10.02.1945(Brooklyn, Nova Iorque).